Projeto criado por cardiologista vai monitorar a saúde de crianças que passam fome em Minas
Na casa ainda em construção em uma ocupação de Sete Lagoas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, moram quatro crianças entre 4 e 9 anos e dois adultos. As crianças são todas filhos de Jenifer Vieira, que trabalha como autônoma. Ela conta que o esforço é grande para manter a comida na mesa. “Tem vez que a gente passa muito aperto. Tem dia que falta uma verdura e aí compramos uma mistura. Mas teve época que a gente chegou a ficar uma semana sem comer carne e verduras”, diz.
Mãe de três filhos, um deles com 3 anos, Poliana Silva luta para não faltar comida em casa. A diarista conta que de tanto correr atrás de cestas básicas para a família dela e dos vizinhos acabou virando referência no bairro onde mora como uma espécie de líder comunitária. De bicicleta, ela percorre as ruas e muitas vezes é parada para receber doações e distribuir entre as crianças da região.
O caçula de Poliana tem bronquite e precisa de uso contínuo de medicamentos para ajudar na respiração, fornecidos pelo posto de saúde. “Mas para garantir a alimentação, tem dia que a gente passa dificuldade. Quando sobra dinheiro, compro verdura. Tem dia que eu não tenho nem 10 centavos para comprar um pó de café, aí substituo por plantas para fazer chá e couve para misturar com feijão e servir no almoço. Tudo vem da hortinha que fiz em casa”, conta.
Histórias como a de Jenifer e de Poliana foram ouvidas, com frequência, por pesquisadores, enquanto percorriam, desde 2020, 14 cidades mineiras que integram o programa de pesquisa “Together”, idealizado por especialistas mineiros, voltado para o tratamento de pacientes já diagnosticados com COVID-19 e antes do surgimento de complicações.
O estudo, realizado em parceria com a McMaster University, do Canadá, é uma iniciativa inédita no mundo. Segundo o cardiologista Gilmar Reis, professor da universidade e também da PUC Minas, e idealizador do programa, os resultados do estudo já salvaram vidas nos cinco continentes, sendo a pesquisa premiada internacionalmente. Mas, além do enfrentamento à pandemia, a equipe de pesquisadores percebeu outro fenômeno, o qual também pode trazer sérios riscos à saúde e até mesmo a morte: a insegurança alimentar.
Para o professor, além de ofertar complementação alimentar de alto valor nutricional, é preciso entender os impactos reais da oferta para a saúde e desenvolvimento cognitivo das crianças já expostas a essa condição. “Durante a pesquisa sobre a COVID-19, fomos a mais de 5 mil residências e em 90% dos casos as famílias eram de baixa renda, em situação de vulnerabilidade social. “Como professor universitário, eu e outros colegas já lidamos com essa situação na nossa atuação junto à atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, percebemos que a insegurança alimentar está pior do que nos últimos anos; constatada em pesquisa recente. Esses estudos evidenciaram um aumento de 70% na situação de fome, em comparação ao período pré-pandemia”, explica Gilmar Reis.
Os fatores, aponta o cardiologista, estão ligados à própria pandemia e à crise econômica provocada pela guerra da Ucrânia, o que vem limitando a oferta de alimentos para o mundo, e também ao resultado ineficiente das políticas públicas existentes no Brasil.
INSTITUTO
Para entender os impactos dessa situação, os pesquisadores criaram o Instituto de Pesquisa David Sackett, voltado a pesquisas de ciência, tecnologia e gestão de processos em saúde, sem fins lucrativos. “Como cientistas – tanto do Brasil quanto do exterior -, queremos saber qual é a dimensão do problema da insegurança alimentar para o desenvolvimento infantil. Existem muitos estudos publicados sobre o que a insegurança alimentar causa em relação a danos para as crianças no desenvolvimento cognitivo e inclusão social, especialmente nos primeiros três anos de vida e suas consequências, as quais persistem por décadas, condenando essas crianças a toda uma existência de desigualdades sociais e humanas”, disse Gilmar.
“Mas constatamos que há uma escassez de informações sobre os efeitos de uma complementação de alimentos de alto valor nutricional para as crianças expostas cronicamente a uma situação de insegurança alimentar moderada a grave. Acreditamos que intervir nesse cruel processo poderá minimizar ou até mesmo reverter o comprometimento do desenvolvimento infantil”, acrescenta o idealizador do estudo.
Ainda de acordo com Gilmar Reis, o projeto “Alimentando sonhos” proporcionará ganhos os quais vão além de simplesmente oferecer alimentos para as pessoas. Poderá trazer informações relevantes acerca de mudanças no desenvolvimento infantil associadas a uma reposição alimentar de alto valor nutricional, gerando informações que podem nortear os gestores a otimizar as políticas públicas para a redução da insegurança alimentar e, ao mesmo tempo, melhorar o desenvolvimento cognitivo da população exposta a vulnerabilidade econômica e social.
Avaliar o tipo de complementação alimentar a ser ofertada, sua influência sobre as doenças crônicas e fatores de risco cardiovasculares (hipertensão arterial, infarto, derrame cerebral, diabetes e suas complicações, obesidade, entre outros), a quantidade e o momento ideal dessa oferta é fundamental, explica ele.
“Estamos entusiasmados com a adesão de cientistas do Brasil e exterior para este projeto e acreditamos que as informações obtidas nesta pesquisa poderão modificar de forma profunda a abordagem da segurança alimentar em populações vulneráveis, especialmente crianças e idosos”, afirma Leonardo Cançado Monteiro Savassi, professor da Ufop e um dos coordenadores da iniciativa.
Como será o projeto
Dividido em duas partes, terá um longo período de acompanhamento:
» Primeiro momento: serão monitoradas até 2 mil crianças de Sete Lagoas e seu respectivo núcleo familiar, com a oferta de complementação alimentar de alto valor nutricional, minimamente processada e saudável do ponto de vista cardiovascular.
» O acompanhamento será anual e incluirá avaliação clínica, cognitiva e de desenvolvimento bem como aspectos associados à vulnerabilidade familiar.
» A previsão de início é novembro (caso todo o recurso seja obtido). A seleção das famílias será em parceria com a Secretaria de Assistência Social do município, seguindo-se o CAD-ÚNICO. Uma equipe multiprofissional fará as avaliações iniciais e o acompanhamento, com consultas médicas e checagem de eventuais problemas médicos, avaliação psicológica, pedagógica e de desenvolvimento dos integrantes das famílias.
» Diversos modelos de execução do projeto-piloto em Sete Lagoas serão avaliados, tais como: agricultura familiar, economia circular, e cultivo compartilhado de diversos alimentos potenciais, como milho, sorgo, soja e banana.
Fonte: Estado de Minas